Cinco anos após o início da pandemia, continuamos a ser ameaçados pela peste ideológica que transformou o choque da Covid em trauma político
Há cinco anos, a OMS decretava o início da pandemia da Covid. Doença traiçoeira, com um vírus que age de maneira customizada, explorando as fraquezas de cada hospedeiro, milhões dos quais morreram asfixiados pela infecção, ou simplesmente não acarretando efeito deletério nenhum, a Covid ainda é uma interrogação virológica, apesar de se ter tornado menos letal, seja por obra das vacinas, da imunidade de rebanho, da evolução natural do seu agente patogênico ou de tudo isso combinado.
Em março de 2020, em outra encarnação jornalística, eu escrevia: “Estou sozinho no meu autoconfinamento. Home office. Milhões de pessoas mundo afora estão sozinhas como eu. Como serão os próximos dias, ninguém sabe sobre si próprio, o quadro é apenas geral no seu drama. A única certeza é que eles, os dias, deverão compor um longo prazo para solitários ou aparentemente não. Lá fora, os barulhos da cidade diminuem a cada dia, prenunciando mais solidões. Com os silêncios que gradativamente se instalam, a imagem que me vem à cabeça é a da Morte divertindo-se enquanto ceifa vidas com a sua gadanha— o clichê do esqueleto com um sorriso no lugar da boca que nunca houve. Quem enviou o Anjo do Abismo?”
Enquanto o vírus nos contaminava, nós contaminávamos o vírus ideologicamente. Confinamento e vacinação obrigatória passaram a ser considerados ideias de esquerda atentatórias contra as liberdades individuais. Questionamentos mínimos sobre certezas científicas adquiridas em tempo recorde para serem consideradas como tal se tornaram negacionismo de uma direita que não valoriza a vida humana.
Pandemias representam, inevitavelmente, um choque psicológico. Elas nos causam medo, angústia e luto, sentimentos que estão destinados a se tornar cicatrizes na nossa existência, uma vez que a doença pandêmica é debelada ou controlada, ainda que deixando dúvidas de ordem científica, muitas delas irrespondíveis.
A pandemia da Covid, contudo, foi além do choque psicológico. É ferida coletiva que não cicatriza por sobreviver como trauma político causado pela contaminação ideológica. Isso significa que nós a revivemos com as mesmas emoções e visões de cinco anos atrás, sempre que somos convocados a examinar os erros e acertos cometidos, bem como as suas consequências.
Das cicatrizes deixadas pelos choques, podemos extrair lições para enfrentar situações semelhantes no futuro. Da eterna repetição causada pelos traumas, não há nada a aprender. Ela nos mantém em idêntica condição de vulnerabilidade. Quando surgir nova ameaça, bateremos cabeça da mesma forma que em 2020, reprisando o tumulto acusatório. Cinco anos depois da pandemia, continuamos a ser ameaçados pela peste ideológica que contaminou a Covid.
Por: Mario Sabino do metropoles.com